O abraço do Talking Heads no pop
Em 2025, dois eventos celebrizam os 50 anos do primeiro show da Talking Heads. “Psycho Killer”, o primeiro hit da banda, ganhou finalmente um videoclipe. E Jonathan Gould, conhecido pela sua biografia dos Beatles, lançou um livro contando a história do quarteto nova-iorquino.
Podemos também colocar na conta das celebrações a nova versão do aclamado Stop Making Sense, documentário que capta a banda, muito bem acompanhada, em shows no final de 1983. O filme foi originalmente lançado em 1984 e ganhou versão restaurada em 4K em 2023.
2025 é ainda importante por marcar os 40 anos de Little Creatures, o sexto álbum de estúdio da Talking Heads. Foi o auge comercial da banda, embora a maioria dos fãs prefira Fear of Music e Remain in Light. Sabem aquela disputa entre o pop e o cult?
Deixemos aos críticos a decisão sobre qual é o melhor álbum da Talking Heads. Little Creatures merece um olhar atencioso porque seus caminhos revelam muito sobre o momento vivido pela banda, assombrada pela dissolução e seduzida pelo sucesso.
Outro motivo: no Brasil, antes de Little Creatures, apenas o álbum anterior e dois LPs ao vivo haviam sido lançados. Em 1985, “And She Was” e “The Lady Don’t Mind” fizeram parte das trilhas sonoras que acompanharam a ascensão do rock na cena musical e cultural do país.
O nome dessa banda era Talking Heads
David Byrne (vocal e guitarra), Chris Frantz (bateria), Tina Weymouth (baixo) e Jerry Harrison (teclado e guitarra) tinham em comum a formação em escolas de arte. Radicaram-se em Nova York e fizeram parte da cena em torno da CBGB, casa de shows que revelou os Ramones. O punk curto e grosso dividia espaço com a poesia de Patty Smith, com o rock da Television e da Blondie e com as experimentações das bandas do No Wave. A Talking Heads tinha um pouco de tudo isso, atrelando música a performance.
Contratado pela Sire Records/Warner, o quarteto enfileirou quatro álbuns antológicos: Talking Heads: 77 (1977), More Songs About Buildings and Food (1978), Fear of Music (1979) e Remain in Light (1980). Nos três últimos, o produtor Brian Eno, ex-Roxy Music, foi um colaborador essencial, com participações decisivas. Isso suscitou tensões entre Byrne, o parceiro privilegiado de Eno e principal compositor, e os demais integrantes da banda.
Em 1981, pipocaram vários projetos paralelos. O casal Chris e Tina formou o Tom Tom Club e fez sucesso com “Genius of Love”, que atingiu o topo da parada disco da Billboard. Jerry lançou um álbum solo. E saiu My Life in the Bush of Ghosts, de Eno e Byrne, que ainda compôs a trilha sonora para um projeto de dança, The Catherine Wheel.
Em 1982, foi lançado The Name of This Band is Talking Heads, trazendo gravações ao vivo feitas entre 1977 e 1981. Em 1983, o quarteto se reúne novamente, sem a presença de Eno, para registrar Speaking in Tongues, um passo em direção ao pop.
Antes de Little Creatures, temos o já mencionado Stop Making Sense, filme e álbum. Música após música, vemos a banda ganhando integrantes e acumulando performances. Para reproduzir as complexas sonoridades geradas no estúdio, eram necessárias bem mais do que quatro pessoas – e o diretor Jonathan Demme tira todo o partido disso.
A ironia da história é que a memorável turnê de Speaking In Tongues registrada em Stop Making Sense foi a última da banda. Não que alguém tenha decidido isso. O fato é que Byrne, Chris, Tina e Jerry não voltaram a se ver nos palcos. No final de 1991, a banda encerrou os trabalhos, aí sim uma decisão de Byrne.
Voltemos ao ano de 1984. Ao mesmo tempo em que compunha as canções que iriam entrar em Little Creatures, Byrne dedicou-se a um projeto de filme. True Stories seria lançado em 1986 e trazia o vocalista da Talking Heads como o narrador e testemunha de histórias que se passam numa cidade imaginária do Texas. As personagens oscilam entre o bizarro e o comovente, em cenários que misturam o non sense ao american dream, com resultados surreais. Nesse Texas, há lugar não apenas para red necks, mas também para hispanos e afro-americanos.
Musicalmente, podemos falar de três versões de True Stories: no filme, as personagens cantam as músicas compostas por Byrne; no LP, essas músicas são interpretadas pela Talking Heads; e a trilha sonora acrescenta ainda outras faixas instrumentais que percorrem o filme. Em “Hey Now” e “Papa Legba”, percebemos surgir uma faceta da música africana que não se confunde com os afrobeats felakutianos que desde Fear of Music faziam parte da sonoridade da banda. Tem mais uma ver com algo que, por exemplo, os Paralamas também estavam incorporando em Selvagem? (também de 1986).
A referência brasileira vai além dessa relação hipotética. Há uma faixa na trilha sonora que se chama “Festa Para Um Rei Negro”. E, para lançar o filme, Byrne veio pela primeira vez ao Brasil. Naquela ocasião, buscando por expressões do samba, comprou um LP de Tom Zé – e isso inaugurou uma interessante parceria com artistas brasileiros. Na verdade, trata-se de algo já presente em Little Creatures, como veremos depois.
O diálogo com novas sonoridades africanas iniciado em True Stories tem continuidade em Naked (1988), o último álbum da Talking Heads, como mostra “Nothing But the Flowers”. Já a adoção do samba aparece em Rei Momo (1989), o primeiro álbum solo de David Byrne, em mais de uma de suas faixas.
Com esse álbum, ficava selada a dissolução da banda. Não que os demais integrantes não tivessem dado continuidade a seus projetos. Em 1988, tinha ocorrido o lançamento do terceiro álbum da Tom Tom Club e do segundo álbum de Jerry Garrison. Mas os três apostavam que seria possível conciliar esses projetos com a continuidade da banda. Little Creatures fazia parte dessa aposta.
Lugar nenhum
Muito diferente das anteriores na carreira da banda, a capa de Little Creatures traz uma pintura encomendada a Howard Finster, um artista outsider que já fora um pregador. Em meio a incontáveis elementos, entre os quais se destacam torres parecidas com a construção que domina Paradise Garden (onde Finster instalou milhares de esculturas), há várias mensagens religiosas e o desenho dos quatro Talking Heads. O vocalista ganha a cena, na pose de um Atlas carregando o mundo.
Sintomaticamente, Byrne está no começo de Little Creatures. Em 1984, em sua casa, ele grava as composições que entrariam tanto no álbum da banda quanto em True Stories. É sobre essas gravações, já no ano seguinte, que Chris, Tina e Jerry trabalham, junto com Byrne, em uma sala de ensaios. Depois, partem para o Sigma Sound, um pequeno estúdio em Nova York. Uma coisa e outra tomam menos de dois meses e o álbum é lançado em junho de 1985.
O resultado das nove faixas de Little Creatures é descrito por um texto do New York Times da época: “a sonoridade é ampla, melodiosa e cativante por toda parte. Sua simplicidade difere daquela dos primeiros anos da banda. Lá, eles buscavam uma precisão formal. Este novo disco está repleto de hinos pop de verão alegres”.
Em depoimentos da época, os integrantes se mostram aliviados: por que tentar produzir novamente uma peça de vanguarda musical? Byrne falou sobre estruturas convencionais para as canções. Tina mencionou a descomplicação do rock. Chris apreciou a tranquilidade com que as versões finais foram atingidas.
A simplicidade se expressou também no formato enxuto dos arranjos. A própria banda produziu o álbum, com a ajuda de Eric Thorngren na gravação e na mixagem. Contou sim com várias participações, mas com intervenções discretas, mesmo quando são fundamentais.
Ainda assim, o conjunto das canções de Little Creatures não deixa de ser inspirado. Tomemos a faixa de abertura, a popíssima “And She Was”. Baixo e bateria vão numa direção e a guitarra e os teclados vão em outra. No refrão, as linhas se juntam. Quando o refrão se repete, a energia é mais alta, na primeira das participações de Lenny Pickett nos metais, e o clímax vem com a guitarra encorpada – em timbres que remetem ao riff de “Love For Sale” (rockaço que está em True Stories).
“The Lady Don’t Mind” foi o outro grande sucesso comercial de Little Creatures, destacado como seu primeiro single. A música já existia desde as sessões de Speaking In Tongues e é uma das duas cuja composição é assinada pelos quatro integrantes. Ganhou uma versão bem diferente em 1985. Soa exótica e exala sensualidade. O refrão brilha com certa latinidade. Byrne se esmera em alguns maneirismos vocais, que voltam a ocorrer em outras faixas.
Chris Frantz comenta em seu livro que as músicas que Byrne deixou para True Stories eram um mix de “Americana, rock, voodoo e gospel”. Essa vertente “americana” (não percam a versão de “People Like Us” no filme) em Little Creatures está bem representada no quase country “Creatures of Love”, com a participação de Eric Weissberg com sua steel guitar.
A sonoridade africana continua a marcar presença. De modo geral, nas linhas de baixo de Tina. Mais especificamente, em uma faixa como “Walk it Down”, levada por sintetizadores. Um riff de guitarra o acompanha. No refrão, o funk flerta com o gospel.
Em “Stay up Late”, o piano constrói a melodia. O refrão nos convida a cantar junto. Alguém viu semelhanças com o estilo dos Temptations. Byrne se aventura em um quase rap enquanto Chris, em raro momento, o segue com uma batida sincopada.
Da mesma safra é “Television Man”. Lá pela metade, destaca-se a percussão de Steve Scales, e então podemos fantasiar como seria uma apresentação no palco caso ela tivesse ocorrido. O trecho termina de um jeito que remete aos experimentalismos de outros álbuns.
Aliás, outra faixa, “Give me Back my Name” poderia estar em algum desses álbuns. Sua estranheza contrasta com a convencionalidade de “Perfect World”, faixa cuja composição também é assinada por Chris. Nessa música, temos a participação do brasileiro Naná Vasconcelos.
“Road to Nowhere”, que fecha o álbum, também foi divulgada como single, embora seja menos pop que “And She Was” e “The Lady Don’t Mind”. Simples na sua composição, ganhou um arranjo que a torna arrebatadora. Inicia com um coral gospel, de muitas vozes, e segue como uma marcha militar. O acordeão dá um toque todo especial à música. Ela vai em um crescendo, até o frenesi final, pontuado pelos gritos de Byrne. Não por acaso, é a faixa de Little Creatures que teve o maior número de covers por outros artistas e uma das mais executadas nos shows de David Byrne ao longo de sua carreira solo.
O vídeo dessa música é outra razão para apreciá-la. Foi dirigido por Byrne em colaboração com Stephen R. Johnson e tem uma montagem engenhosa. Três outras faixas de Little Creatures ganharam vídeos, com destaque para “And She Was”, nas mãos de Jim Blashfield, e “The Lady Don’t Mind”, aos cuidados de Jim Jarmush.
As letras das canções do álbum foram assim descritas em uma resenha da Pitchfork: “Little Creatures é uma celebração do amor, da procriação e de todas as coisas normais que Byrne costumava tratar com um sentimento de medo e alienação”. Isso estaria em sintonia com o momento de vida dos integrantes, todos com mais de 30 anos, Chris e Tina com um filho pequeno, Byrne nas vésperas de seu casamento.
Nessa chave, faz sentido lembrar, por contraste, de uma faixa como “Burning Down the House” e dos versos de “Once in a Lifetime”, entoados como uma pregação religiosa: “E você pode se encontrar / Em uma bela casa / Com uma linda esposa / E você pode se perguntar / ‘Como cheguei aqui?’”
Já em Little Creatures, haveria um apreço pelos ambientes domésticos e familiares, com crianças perambulando, como literalmente aparecem em “Creatures of Love” e “Stay up Later”. Ok, mas isso convive com coisas estranhas, como as misteriosas mulheres que habitam sete das noves músicas.
“And She Was” é o relato deslumbrado sobre uma mulher que levita e roda junto com o mundo, imagens muito bem traduzidas no videoclipe da música. Em “The Lady Don’t Mind”, outra mulher pula pela janela com um sorriso no rosto. Se “Perfect World” encanta-se com uma mulher perfeita, “Walk it Down” se equilibra entre constrangimentos e desejos.
Há outros temas e mais estranhezas. Em “Television Man”, o narrador se funde ao que vê na TV e anuncia: “O mundo desaba na minha sala de estar”. “Give Me Back My Name” é enigmática, angustiante mesmo: “Algumas coisas nunca podem ser faladas”.
Mesmo “Creatures of Love”, a canção sobre bebês, tem versos como: “Eu sou um macaco e uma flor / eu sou tudo de uma só vez”. E as pequenas criaturas que “cobrem a cama” podem não ser bebês, mas adultos em miniatura, o que é perturbador. Daí: “Doutor, doutor, diga-me o que eu sou / Sou um desses seres humanos? / Bem, eu posso rir ou posso aprender a pensar / Então me ajude agora a descobrir o que eu sinto.”
“Road to Nowhere” começa com enigmas que têm a mesma forma daqueles que preenchem “Perfect World”, mas em seu caso não há resolução possível. Escreveu Byrne: “quis compor uma letra com um olhar resignado, até divertido, sobre nossas sinas, nossas mortes, o apocalipse”. O futuro, o paraíso, a próxima cidade, os destinos não levam a lugar nenhum – e está tudo bem!
A letra, especialmente quando a cantamos junto com a música, é uma reflexão sobre o absurdo de nossas vidas, e que mesmo assim merecem ser vividas. Mas pode ser também o sintoma dos impasses de uma banda em dissolução. Nesse caso, os versos de Byrne parecem se dirigir aos outros três: “Talvez vocês se perguntem onde estão / Eu não me importo”.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.