Dissecando “Tracks II”, o caixote de Bruce Springsteen
O início dos anos 1990 não foi um tempo fácil para Bruce Springsteen. Antes de aparecer na trilha sonora de “Filadélfia”, longa de Jonathan Demme, estrelado por Tom Hanks e Denzel Washington, com a faixa “Streets Of Philadelphia” em abril de 1994, Bruce havia dado alguns tiros na água. Por exemplo, os álbuns “Lucky Town” e “Human Touch”, lançados dois anos antes, que falharam na intenção de apresentar a versão solo do cantor e compositor, visto que, sua banda, a E Street Band, havia se separado em 1989. Também surgiu “Bruce Springsteen Plugged”, em 1993, com partes de uma apresentação de Bruce no “Acústico MTV”, com o repertório dos discos gêmeos, igualmente mal sucedida. Dá pra dizer que “Streets…”, mesmo sendo tão diferente em termos sonoros do que Bruce fizera até então, significou uma, ao mesmo tempo, uma reinvenção e um retorno ao melhor da forma. A canção foi um sucesso, ganhou prêmios, inclusive o Oscar de Melhor Canção naquele ano. Durante 1994, Springsteen gravou mais material semelhante ao seu single de retorno: músicas melancólicas com batidas de bateria e sintetizadores, a maioria autoproduzida em seu estúdio caseiro em Los Angeles, com mínima instrumentação adicional. No final do ano, Bruce tinha um álbum pronto e estava perfeitamente pronto para ampliar o sucesso de “Streets Of Philadelphia”.
Mas não foi o que aconteceu.
Na verdade, ele convocou de volta a E Street Band para uma reunião de estúdio em janeiro de 1995 com a missão de criar algumas faixas-bônus para seu primeiro álbum de “Greatest Hits”, entre elas, “Secret Garden”, que foi parar na trilha sonora de outro filme bacana: “Jerry Maguire”, estrelado por Tom Cruise. Bruce ressurgiu como artista crucial quando lançou, no final de 1995, o álbum acústico “The Ghost of Tom Joad”, inspirado na obra de John Steinbeck, “As Vinhas da Ira”, colocando a narrativa original em contextos atuais. Mas e as gravações de 1994, seu álbum “Streets Of Philadelphia”, ou, como os fãs logo o chamariam, seu “álbum de hip-hop”, ou seu “álbum de loops”, seu álbum “eletrônico”, fosse o que fosse, permaneceu na prateleira, adquirindo status mítico. Agora, sim, ele poderá ser ouvido por todos.
“Streets of Philadelphia Sessions” é um dos sete álbuns perdidos que compõem “Tracks II”, a tão esperada continuação do anterior grande lançamento de material de arquivo de Springsteen em 1998, “Tracks”. Tanto em suas notas escritas sobre o box set quanto em um dos ensaios de Erik Flanagan que acompanham cada álbum individualmente, Bruce diz que decidiu não lançar “Street Of Philadelphia Sessions” porque não tinha certeza se seus fãs mais antigos aceitariam um disco melancólico de canções sombrias sobre relacionamentos fracassados, arranjadas apenas com sintetizadores e baterias programadas. Até que faz sentido, afinal de contas, eram os anos 1990 e não dava pra errar completamente, ainda mais para alguém que estava em uma, digamos, má fase.
Ouvindo o álbum, talvez por conta do olhar adquirido com a passagem do tempo, o que está presente em “Street Sessions” parece uma continuação estética lógica do que Bruce fez em “Tunnel Of Love”, seu “disco de separação”, lançado em 1987, após o megasucesso de “Born In The USA”, três anos antes. As canções ali eram mais sombrias, econômicas e sem a presença da E Street Band. Aqui, sete anos depois daquele disco, Bruce parece dar continuidade a este tom, mas ainda aprofundando a assinatura instrumental por conta dos tais loops e sintetizadores que, de fato, conferem um ar diferente, mas não menos bacana. De fato, a abertura com “Blind Spot”, com um loop de bateria sampleado e instrumental mínimo, segue o mesmo approach de “Streets Of Philadelphia” e o resto do álbum vai pelo mesmo caminho. Dá pra dizer hoje, 2025, que seria sensacional se Bruce tivesse enveredado por esse caminho, mas, ao mesmo tempo, é quase certo que este seria um disco, no mínimo, controverso.
A impressão de estarmos diante da mesma estética de “Tunnel Of Love” se aprofunda em “Waiting On The End Of The World” e “Something In The Well”, duas faixas em que há guitarras presentes e a programação de bateria não vai para os lados do “hip-hop”. Uma versão de “Secret Garden”, a tal faixa que foi parar na trilha de “Jerry Maguire” também está presente por aqui, obedecendo o conceito do álbum, ou seja, com instrumental diferente e uma levada bem diferente da versão “oficial”. A beleza da canção é tamanha que, seja em qual versão ela surja, o resultado é ótimo. Tem “Between Heaven And Earth”, que tem uma batida que pode ser a mesma usada pelo PM Dawn em “Set Adrift On Memory Bliss”, seu sucesso de 1991. Aqui o Boss assume a mesma persona de “Philadelphia” e investe fundo neste existencialismo urbano. Destoando bastante dessa abordagem triste e econômica, surge a maravilhosa “One Beautiful Morning”, que conta com o baterista Zach Alford e o baixista Tommy Sims, além da Sra. Springsteen em pessoa, Patti Scialfa, e da futura integrante da E Street Band Soozie Tyrell. É, repito, uma beleza de canção, que contrasta o arranjo alegre com a letra meditavida sobre a morte e outras situações bem sérias e definidoras.
Mas não é só de “Street Of Philadelphia Sessions” que “Tracks II” vive. Pelo contrário, os outros álbuns presentes irão fazer a delícia dos fãs e dos curiosos em diferentes aspectos e recortes temporais. Por exemplo, quem nunca se perguntou o motivo de Bruce ter saído da economia instrumental absoluta de “Nebraska”, seu álbum acústico e “lo-fi”, de 1982, para a exuberância de estádio de “Born In The USA”, em apenas dois anos? Por que discos tão diferentes em tão pouco tempo? Simples, porque existiu outro trabalho entre eles, batizado agora de “LA Garage’83”.
Dá pra dizer que este é o outro álbum totalmente conceitual de “Tracks II”, que foca no período mais visível mundialmente da carreira de Springsteen. Com ele é possível ver que Bruce tinha a ideia de seguir adiante com o formato de “Nebraska”, seu álbum gravado num aparelho de quatro faixas, quase uma história completa de figuras e situações próprias. Breuce tinha um conjunto de dezoito faixas escolhidas para o próximo trabalho, que se tornou “Born In The USA”. Antes, porém, de finalizar essas canções com a E Street Band, ele pensou – e gravou – algumas delas em um formato semelhante às faixas de “Nebraska”, pensando na continuidade estética. E o fez na garagem de sua casa em Los Angeles. As músicas, no entanto, sejam baladas folk desoladas (“Country Fair”), rocks rurais (“Don’t Back Down”) ou temas mais contemplativos (“Sugarland”), soam fantasmagóricas. Há lados-B famosos em shows até hoje – “Johnny Bye Bye” e “Shut Out The Light”, além de “My Hometown” com letra ligeiramente diferente da versão que foi parar em “Born In The USA”. Uma faixa maravilhosa não entrou no álbum, “The Klansman”, um relato sobre um jovem que descobre que seu pai é um recrutador da KKK que quer que ele ajude a “limpar este país”. Tristemente atual para os USA de 2025.
É como se “LA Garage” oferecesse toda a carga pesada em termos emocionais que “Born…” acabou trazendo de forma compacta e mesmo insinuada. Para cada canção “alegre”, como “Glory Days” ou “Dancing In The Dark”, havia sempre um contraponto existencial e sombrio. Para outras, como “Bobby Jean”, “I’m Going Down” e mesmo a faixa-título, essa dureza fica exposta de formas distintas, mas sempre verdadeiras. Canções presentes aqui como “Seven Tears”, “Fugitive’s Dream”, “Black Mountain Ballad” e “Richfield Whistle” mostram que este sentimento estava intencionalmente presente já no conceito que o álbum tomaria.
Os outros discos presentes em “Tracks II” são coletâneas temáticas ou cronológicas. O material que Bruce cogitou para lançamento pela rediviva E Street Band nos anos 1990, agora vem compilado em “Perfect World”. Sua faixa-título, gravada em demo em 1997, foi regravada por John Mellencamp em 2023. O Bruce country surge contemplado por “Somewhere North Of Nashville”, que, além de “You’re Gonna Miss Me When I’m Gone” (2010) e sua faixa-título de encerramento (uma versão alternativa de uma música de “Western Stars” (de 2019), é basicamente o som de Springsteen e um grupo informal de amigos. Faz sentido se pensarmos que a maioria dessas gravações são simultâneas em relação ao repertório que entrou em “Ghost Of Tom Joad” em 1995. Seria até uma forma de Bruce e seus músicos aliviarem a tensão. Algumas canções são versões rearranjadas de lados B dos tempos de “Born In The USA”, como “Stand On It”, “Janey, Don’t You Lose Heart” e uma adorável cover para “Poor Side Of Town”, gravada com sucesso por Johnny Rivers nos anos 1960.
Outro álbum presente aqui é o curioso “Twilight Hours”, que compreende canções escritas ao mesmo tempo que “Western Stars” (2019), que marcou um momento muito interessante e inédito na carreira de Bruce, no qual ele andou visitando timbres e sonoridades próximas do pop perfeito americano dos anos 1960, especialmente de gente como Jimmy Webb e Burt Bacharach. O baterista Max Weinberg adiciona se destaca em “Two Of Us”, e David Sancious aparece na bossa nova estilizada que é “Follow The Sun”. Como curiosidade maior, a presença de “I’ll Stand By You Always” (de 2001), uma canção que entrou em “Blinded By The Light” (2019).
No setor das esquisitices, está “Faithless”, uma trilha sonora encomendada para um filme que nunca foi feito. Springsteen disse que a ideia era algo como um “western espiritual”, e essa é a noção que o ouvinte tem, com o Boss pesando a mão em sua persona religiosa já nos títulos das canções (“All God’s Children”, “My Master’s Hand”; “A Prayer By The River”). A inspiração é nítida em Ry Cooder. Finalmente, em uma veia semelhante, há “Inyo”, essencialmente uma compilação de 10 canções tematicamente relacionadas que abrangem 1994-2010, que se conectam a “The Ghost Of Tom Joad” e “Devils & Dust” (2005), falando principalmente das agruras dos americanos que não são vistos, como imigrantes, pobres, trabalhadores e outros carregadores de piano na América dourada. Bruce é um cara com consciência social e histórica e este compêndio de canções fecha uma trilogia temática importante e prestigiada.
“Tracks II” traz sete álbuns inéditos e 83 músicas. A primeira “Tracks” tinha cinco CDs e 66 faixas, sem o rigor da divisão por período ou tema. Bruce já confirmou o lançamento de um terceiro volume num prazo de quatro anos. No início, o Boss detectou um total de 350 faixas arquivadas em várias formas. Só nos resta esperar. Bruce trata bem os fãs. E a gente só pode agradecer. A totalidade da caixa está disponível nos serviços de streaming e em vários formatos de mídia no site do artista e, como se dizia antigamente, “nas boas lojas do ramo”. Caia dentro, de uma forma ou de outra.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.