Barão Vermelho em 1984: completo e siderado
O Barão Vermelho teve um 1984 bárbaro. Desde o final do ano anterior, “Pro Dia Nascer Feliz”, música do segundo álbum, entrou na programação das FMs. Ney Matogrosso teve grande contribuição ao gravar a faixa em seu LP Pois É, de 1983. Caetano Veloso também ajudou, inserindo uma versão acústica de “Todo Amor que Houver nessa Vida”, música do primeiro álbum, em seus shows.
O sucesso rendeu um convite para a banda compor a música-tema de um filme. Bete Balanço, longa-metragem de Lael Rodrigues, seguia o trajeto de uma jovem cantora ao tentar a vida em uma grande cidade. Segunda maior bilheteria do cinema nacional até aquele momento, a produção acompanhava a ascensão do BRock, abrindo espaço para várias bandas em sua trilha sonora – como Titãs e Lobão e os Ronaldos.
O filme deu destaque especial para o Barão. A banda aparece em várias cenas. Cazuza faz o papel do roqueiro Tininho. A trilha sonora inclui outra faixa do quinteto, “Amor Amor”. E “Bete Balanço” foi uma das músicas mais ouvidas durante o segundo semestre de 1984.
A consagração aconteceu no primeiro Rock in Rio, em janeiro de 1985, em duas apresentações. No dia 15, Scorpions e AC/DC fechavam a noite, atraindo o público metaleiro. Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens e Eduardo Dusek sofreram com a impaciência desse público. Mas o Barão Vermelho foi mais forte que tudo, fazendo um show elogiadíssimo (lançado em álbum em 1992).
No mesmo dia havia ocorrido, no Congresso Nacional, a eleição de Trancredo Neves, o primeiro presidente civil desde 1964. A cena de Cazuza, enrolado na bandeira nacional, cantando “pro Brasil nascer feliz”, tornou-se um dos ícones da redemocratização.
A base dos shows no Rock in Rio foi o LP Maior Abandonado, que está completando 40 anos. É o terceiro álbum da banda e o último com a participação de Cazuza. Com os instrumentos nas mãos de Robert Frejat, Guto Goffi, Dé Palmeira e Maurício Barros, o Barão nunca voou tão alto.
No estúdio e na estrada
A banda tinha um sexto integrante não oficial: Ezequiel Neves. Zeca já era quarentão quando “descobriu” o Barão Vermelho em 1982. Desde então, tornou-se padrinho, tutor e admirador-mor dos rapazes. Foi ainda o produtor das músicas da banda, desde o primeiro LP.
No segundo álbum, Ezequiel dividiu o trabalho com Andy Mills, que chegou ao Brasil como técnico de som de Alice Cooper nos anos 70 e aqui ficou. O britânico exigiu bastante dos garotos. Barão Vermelho 2 soa muito diferente do 1.
Mills acompanhou a banda na gravação de “Bete Balanço”, que ocorreu nos Estúdios Transamérica. Maurício estava de férias e foi substituído por Rique Pantoja nos teclados. Outro tecladista, Nico Resende, teve participação em “Amor Amor”, registrada em um estúdio paulistano. Um compacto foi lançado com as duas músicas.
De volta ao Rio, em julho o quinteto se concentrou nos estúdios da Som Livre, sua gravadora, em uma parceria com a CBS (Opus/Columbia), desde o primeiro álbum. Dessa vez, dispensou Mills e manteve Zeca como parceiro de produção. Certamente Zeca contribuiu com muitas ideias, mas a magia dos botões ficou a cargo de Jorge Guimarães, técnico de gravação e mixagem.
Outras dez faixas foram gravadas nesses estúdios. Primeiro, o baixo de Dé e a bateria de Guto eram registrados ao mesmo tempo. Frejat acrescentava a guitarra. Em seguida, entravam os teclados de Maurício. Por último, Cazuza gravava as vozes.
No estúdio, há poucas participações de outras pessoas: em uma faixa, o coro fica por conta dos jovem-guardistas do Golden Boys; em outras duas, um improvisado Trio Caminhão assume as mesmas funções. Léo Gandelman contribui com seu sax em uma música. Em duas mais, Zé Luiz Segneri, também com o sax, instrumento que levou para os palcos do Rock In Rio. Paulo Humberto Pizziali, o percussionista Peninha, participa em duas faixas. Ele já havia entrado com seus tambores em uma música do segundo álbum. Em 1987, se tornaria integrante oficial da banda.
Maior Abandonado foi lançado em setembro de 1984, com shows em São Paulo e no Rio de Janeiro. Pouco antes das apresentações no Rock in Rio, atingiria 100 mil cópias, o que rendeu o primeiro disco de ouro à banda. Em 1985, a turnê passou por vários estados brasileiros, levando uma equipe de mais de 10 técnicos, um exemplo de como o festival internacional impactou na profissionalização do BRock.
Durante essa turnê, vários incidentes escancaram as tensões entre Cazuza e o resto da banda. Em julho, nas vésperas de começarem a gravação do quarto álbum, o vocalista anunciou sua saída. As novas composições (que incluíam “Mal Nenhum”, apresentada no Rock in Rio) foram divididas. Cazuza iniciou sua carreira solo e o Barão Vermelhou continuou sua história, contada em detalhes no livro de Ezequiel Neves, Guto Goffi e Rodrigo Pinto e no documentário de Mini Kerti.
Intensidade e contenção
Maior Abandonado foi alavancado com a inclusão de “Bete Balanço”, que entrou como a última faixa. Imaginem um Eric Clapton incorporado por um Santana: é mais ou menos assim que é a guitarra de Frejat, que manda um solo antológico ao final da música. Contrariando a regra, em que as composições partiam dos rabiscos de Cazuza, dessa vez Frejat saiu na frente e o vocalista encaixou a letra inspirada no roteiro do filme.
Outro destaque foi a faixa título, que abre o álbum. “Maior Abandonado” é um rock direto, com um solo discreto de guitarra em seu miolo. A melodia solar contrasta com a letra. Cazuza traz de volta um “carente profissional” (música do segundo álbum), agora descrito com a ironia de um drama social: “Só um pouquinho de proteção / ao maior abandonado”.
No início do lado B do vinil está “Por que a Gente é Assim?”, com seu riff indefectível. Parida nas quatro mãos de Cazuza e Zeca, a letra mistura perigosamente drogas e sexo. Quando canta “Você tem exatamente um segundo prá aprender a me amar”, promete um bolero; quando completa com “Você tem a vida inteira / Prá me devorar”, é o máximo do rock’n’roll.
“Bete Balanço”, “Maior Abandonado” e “Por que a gente é assim?” são, cada uma de um jeito, intensas na sua sonoridade. Incluiria também nessa lista “Eu Queria Ter uma Bomba”, registrada nas gravações de julho de 1984, mas lançada apenas em um compacto em 1985. Uma power ballad, uma letra de recusa que não esconde o desejo.
As demais faixas do terceiro álbum do Barão Vermelho não mostram a mesma intensidade sonora. Mas ainda há algumas a destacar, caso o critério seja a atenção que lhe conferiram a própria banda e outros intérpretes.
Houve uma aposta em “Baby Suporte”, com sua letra singular composta por Cazuza, Zeca, Maurício e seu irmão Pequinho. “A vida é bem mais perigosa que a morte”, filosofam. Foi parar em trilha de novela da Rede Globo e ganhou um videoclipe. Seu arranjo é engenhoso.
“Milagres”, com seu refrão new wave, tem a contribuição de Denise Barroso, irmã de Julio Barroso (Gang 90), ao qual o álbum é dedicado (junto com Eduardo Ramalho, assistente de som no primeiro álbum, também precocemente morto). Na letra, a pobreza e a violência assolam a arte: “Que tempo mais vagabundo esse agora que escolheram prá gente viver”. Elza Soares, ainda em 1985, gravou uma versão, que num videoclipe ganha a participação de Cazuza. Adriana Calcanhotto junta a letra dessa música com a de “Miséria” dos Titãs em uma faixa de Senhas (1992).
Havia blues em quase tudo que o Barão fazia, inclusive em algumas baladas. Lembram de “Down em Mim” do primeiro álbum? E de “Blues do Iniciante”, do segundo? Em Maior Abandonado, a banda comete “Não Amo Ninguém”. A letra havia sido começada por Zeca; Cazuza rasurou e arrematou a narrativa, que atravessa a noite, sobre um amor inacessível. O solo de Frejat é inspiradíssimo.
“Não Amo Ninguém” está entre as músicas do Barão/Cazuza que ganharam versão da fã Cássia Eller. De Maior Abandonado, ela regravou ainda “Bete Balanço” e “Por que a Gente é Assim?”. Todas as três entraram no repertório do primeiro álbum ao vivo do próprio Barão (1989), o que confirma sua relevância.
O álbum de 1984 traz ainda mais cinco faixas, um tanto apagadas diante do destaque conquistado pelas demais. Todas são assinadas por Frejat e Cazuza. “Dolorosa” tem uma letra com safadezas de bar. O solo de guitarra desponta em meio a uma levada jazz, interrompida pelo refrão meio ska.
“Nós” fala de uma turma e seus devaneios, mas resvala para a promessa de um recado “alucinado de amor” endereçado apenas para alguém. Essa música é uma das primeiras parcerias entre Cazuza e Frejat e chegou a ser gravada nas sessões do primeiro álbum, com um arranjo então mais próximo do reggae.
Meio rock’n’roll, meio jazz, “Narciso” é feita de desafios e promessas dirigidas a alguém que pode ser do mesmo sexo. Palco mal cifrado para a bissexualidade de Cazuza aparecer: “Todo humano é santo / E pode amar, sim”.
Em “Sem Vergonha”, o tema é o jogo da sedução. Em “Você se Parece com Todo Mundo” (que foi regravada por Frejat em carreira solo), a dor da separação temperada por um desabafo de repulsa. Ambas voltam a mostrar como o Barão tinha um flerte com o jazz.
Desde sempre a banda foi descrita como “rock’n’roll”, a tradução brasileira dos Stones e por aí vai. Escutando bem, percebemos que há vários temperos. Há as latinidades, ajudadas pela percussão de Peninha, que afloram nas intensas “Bete Balanço” e “Por que a Gente é Assim?”. Os shows incluíam “Diplomacia”, um samba canção de Maysa transformado em tango rock.
Há ainda muito da new wave que animou os primeiros tempos do BRock e que aparece nas roupas coloridas que Frejat e Dé vestem na capa de Maior Abandonado. Junto com o jazz, essa new wave herdada do pós-punk produzia uma contenção que se reflete na limpeza do som que ouvimos no álbum, mesmo nos seus momentos mais intensos.
De fato, o Barão Vermelho não tinha uma única faceta. As inspirações de seus instrumentistas traçavam linhas para fora do rock. Frejat curtia Luiz Melodia, Novos Baianos e Erasmo Carlos. Dé já havia tocado chorinho… Como seus parceiros, Guto e Maurício eram músicos com amplas influências.
Ao mesmo tempo, a banda estava muito bem inserida nas engrenagens do showbizz da época. Músicas em novelas. Videoclipes no Fantástico. Aparições no programa do Chacrinha, que se desdobravam na maratona de playbacks pelos subúrbios cariocas organizada pelo filho do “velho guerreiro”.
Por outro lado, cortejavam a marginalidade. Para a capa de Maior Abandonado, foram levados pelo fotógrafo Frederico Mendes e pelo designer Felipe Taborda para a Lapa, então um bairro degradado e associado com a prostituição. Na contracapa, um policial simula uma batida, revistando os garotos. Meses depois, em São Paulo, parte da banda passaria algumas horas na prisão sob a acusação de porte de drogas. Em seguida, fizeram um show em um presídio feminino.
Embora a música do Barão Vermelho exalasse a maresia do Arpoador, havia mesmo uma conexão com a Lapa. Ali ocorreram as gravações do clipe de “Baby Suporte”. Ali ficava o Circo Voador, um dos palcos mais frequentados. Galera de Artes, um projeto de valorização da Lapa, tinha o apoio da banda.
Cazuza, o mais velho dos rapazes (ele tinha 26; os demais, entre 19 e 22), era também uma encruzilhada de referências: a literatura beatnik, o desbunde hippie, a performance teatral, o drama do samba-canção. Mas ele estava sob suspeita, sendo “filho do dono da gravadora”. Seu pai, João Araújo, era fundador e presidente da Som Livre.
Quem sabe por isso exacerbasse em suas letras e suas opiniões o lado marginal e contestatório da música. Zeca escreveu, ainda em 1982, que “os versos de Cazuza reinventam o português de forma telegráfica, sem literatices (…). Seu recado possui a urgência das cusparadas, lâmina afiadíssima retalhando instantes de solidão ou amor total”.
Em 1984, nenhum outro artista do BRock tinha letras tão intensas quanto as do Barão Vermelho. Talvez a sonoridade de algumas músicas tenha envelhecido, mas as palavras continuam a nos provocar: amor-escárnio, amor-canibal, amor-insano, amor-chantagem, amor-navalha…
Em entrevistas, como esta para a Folha de São Paulo em setembro de 84, Cazuza provocava: “O disco Maior Abandonado tem toda uma temática de vida boêmia e fossa, que é uma ligação minha com o Nelson Gonçalves, Lupicínio Rodrigues e Ataulfo Alves. Um dia ainda chamo o Nelson Gonçalves para cantar uma música com o Barão. Se isso chocar algum roqueiro, é sinal de que ele precisa se libertar desse trauma”.
Por sua música cheia de temperos, suas letras de poesia marginal, num tempo em que o BRock cobria expoentes que iam de Lulu Santos a Camisa de Vênus, de Herva Doce a Ritchie, de Celso Blues Boy a Kid Abelha, de Marina a Paralamas, o Barão Vermelho, sem deixar de fazer parte dessa cena, foi singular.

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).