Van Morrison lança seu melhor disco em décadas
Van Morrison – Remembering Now
68′, 14 faixas
(Exile)

Amo a música de Van Morrison desde que ouvi, lá por 1989, a faixa “Have I Told You Lately”, presente em seu álbum “Avalon Sunset”, lançado naquele ano. Impulsionado por uma resenha da revista Bizz, comprei o disco sem saber nada sobre a trajetória do homem e foi uma das melhores coisas que fiz na vida. Pouco depois conheci seu maior hit, “Brown Eyed Girl”, de 1967, presente na trilha sonora de algum filme e me empenhei para conseguir um exemplar de “Astral Weeks”, álbum que Van lançara em 1968, endeusado na seção Discoteca Básica, também da Bizz, como sendo um dos álbuns mais impressionantes já gravados. Dito e feito. A partir daí, Van esteve presente em minha vida de fã de música, me inspirando e assumindo um status quase mítico, de um músico incapaz de fazer álbuns menos que maravilhosos. Isso se confirmou ao longo do tempo, mesmo nos anos 2010, quando ele apresentou sinais de desgaste criativo, algo que culminou na pandemia da covid-19, quando Van, inesperadamente, assumiu um papel negacionista, indignado com os efeitos que o isolamento social causara na indústria de shows.
Ainda que este seja um ponto a ser argumentado, ele deu entrevistas como se fosse um lamentável tiozão do Whatsapp, bradando sobre conspirações do “sistema” contra a liberdade e coisas ainda mais escabrosas. Sob esta inspiração, produziu álbuns execráveis, como “What’s Gonna Take?” (2022) e “Latest Record Project, vol.1” (2021), além do terrível single “No More Lockdown” (2020). Tudo parecia terminado quando ele ressurgiu em “Accentuate The Positive” (2023), um disco de covers primevos do rock’n’roll, numa espécie de “deixa disso” artístico, meio que começando de onde sua obra sempre se alimentou mais – o soul, o r&b, o rock’n’roll. A outra paixão sonora dele, o skiffle, foi homenageado em outro álbum, “Moving On Skiffle”, lançado na mesma época. Agora, dois anos depois, o homem volta com um trabalho que pode ser o seu melhor em mais de trinta anos, “Remembering Now”.
Van não só retornou à sua forma artística, na qual ele atua como um tradutor pra lá de especial desses idiomas americanos – soul e r&b especialmente -, como reencontrou sua excelência como um dos mais talentosos compositores em atividade. Sua versão celta dessas sonoridades, embebida por visões e sentimentos da infância, do pós-guerra, da pobreza e, com o tempo, do misticismo e espiritualidade em meio à barra pesada dos anos 1970 e 1980, forjaram uma cátedra no pop rock pós-sessentista. O homem criou tudo isso a partir de suas próprias convicções, formadas a partir de tudo isso. Lembro de ouvir “In The Days Before Rock’n’Roll”, canção que ele gravou em 1990, no álbum “Enlightment”, e dar de cara com um relato quase literato de como era complicado para um menino pobre em Belfast captar os sinais de rádio vindos da América e retransmitido por emissoras europeias naquele fim de anos 1950. A narrativa aponta suas inspirações, seus esforços para criar gambiarras de rádio-amador e ondas curtass e o efeito que a música fez nele. Este tema é extremamente importante para Van, tanto que ele o revisita com certa frequência e, neste novo trabalho, temos mais uma canção sobre isso, a majestosa “If It Wasn’t For Ray”. Aqui ele direciona sua admiração e gratidão a Ray Charles, cujas canções e álbuns foram de importância absoluta para o jovem Van aprender sobre a vida e o que viria a ser.
“Remembering Now” é um álbum autorreferente. O primeiro single, “Down To Joy”, lançado anteriormente, é uma aula de como fazer uma canção em midtempo usando influências do r&b mais clássico, com os vocais possantes de Van à frente de metais e órgão em ponto de bala, sem falar numa inesperada guitarra. Ele faz tudo parecer fácil, mas sabemos que tal maestria exigiu décadas de aprendizado e fluência. A terceira canção, “Haven’t Lost My Sense Of Wonder”, faz alusão direta a um álbum lançado em 1986, “Sense Of Wonder”, época em que o trabalho do homem foi criticado por jovens pós-punks como “viajante demais” mas que, com o afago do tempo, foi compreendido como tão sensacional quanto outros momentos. Em “Back To Writing Love Songs”, Van também se reconcilia com sua persona romântica, certamente um dos pilares de sua atuação como compositor. Ao avisar que “voltou a escrever canções de amor”, ele mostra como é preciso e sensacional nos arranjos, metendo fraseados de cordas que fazem lacrimejar o mais descrente dos seres. Mais adiante, “Stomping Ground” e “Memories And Visions” surgem como típicos exemplares da pena vanmorrisoniana, sem pressa, usando e abusando de referências instrumentais de cordas, metais, sempre com exuberância e influência do melhor da soul music universal. Por fim, “Stretching Out”, com quase nove minutos, reafirma a calma e a necessidade de usar o máximo possível de inspiração.
Van Morrison é um tesouro vivo da música universal. Sua obra é mais forte que tudo, especialmente por sua inspiração e sua realização. Ouça sem contra-indicações.
Ouça primeiro: “Down To Joy”, “If It Wasn’t For Ray”, “Haven’t Lost My Sense Of Wonder”, “Love, Lover And Beloved”, “Back To Writing Love Songs”, “Once In A Lifetime Feelings”, “Stomping Ground”, “Memories And Visions”, “Remembering Now”, “Stretching Out”

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.