Hyldon e Adrian Younge criam maravilha soul psicodélica
Hyldon e Adrian Younge – HYLDON JID23
25′, 8 faixas
(Jazz Is Dead)

Hyldon já assegurou um lugar no Olimpo dos Grandes Compositores de Todos Os Tempos pela criação e gravação de “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda (Casinha de Sapê)”, em 1975. Não é exagero dizer que esta canção é uma das mais belas, longevas e perfeitas criações da música pop em qualquer idioma. Como se isso não bastasse, o homem ainda tem um rosário de outras lindas criações, como “As Dores do Mundo”, “A Sombra de Uma Árvore”, “Homem Pássaro”, “Estão Dizendo Por Aí”, “Solange”, “Velho Camarada”, a lista é imensa. E, claro, como somos um país que maltrata sua memória, Hyldon merecia muito mais reconhecimento, algo que não falta lá fora, no entanto. Assim como os parceiros de tantas gravações, os integrantes do Azymuth e Marcos Valle, por exemplo, Hyldon é celebridade na esclarecida cena de produtores e DJs britânicos responsáveis pela difusão de uma vertente do chamado acid jazz noventista que, apresentou esses – e outros – artistas brasileiros a um público novo e ávido. Não por acaso, o produtor americano Adrian Younge, multiinstrumentista e fundador do selo Jazz Is Dead, convocou Hyldon para um álbum em parceria com ele e alguns convidados. O resultado é avassalador.
Younge nasceu em 1978, três anos depois de “Na Rua, Na Chuva…”, iniciou sua carreira como produtor e trilheiro de produções alternativas em Los Angeles. Conheceu muita gente do meio e ficou amigo de Ali Shaheed Muhammad, do venerável A Tribe Called Quest, uma das formações mais criativas e importantes do rap americano e pioneira na fusão do estilo com elementos do jazz. Com Shaheed, ele produziu gente como Wu-Tan-Clan e compôs canções que chegaram a ser gravadas por Kendrick Lamarr e Cee-Lo Green, mas, sem dúvida, o maior feito da dupla foi ter fundado o selo Jazz Is Dead em 2017. A partir de 2020, a dupla iniciaria uma sequência de álbuns colaborativos com uma verdadeira constelação de músicos, partindo de Roy Ayers e chegando a Marcos Valle, Azymuth, Doug Carn, Brian Jackson, Henry Franklin, João Donato, Tony Allen e por aí vai. Ou seja, além de saciar a sede de informações sobre o modus operandi desses monstros, Younge ajudou a revitalizar muitas carreiras e/ou oferecer espaço para ousadias sonoras que talvez eles não fizessem sozinhos. Este disco com Hyldon é um exemplo disso.
O risco que este tipo de colaboração pode trazer é o desvirtuamento da obra do integrante mais velho em nome de uma “modernidade” para que ele seja “apreciado por novos públicos”, mas, felizmente, nada disso acontece por aqui. “JID23 HYLDON” é uma porrada, uma lindeza total, cheio de canções inéditas e arranjos que respeitam as diretrizes da obra de Hyldon e mantém seu flerte elegante com as sonoridades black das quais Hyldon se valeu menos do que dizem por aí. O belo de seu trabalho sempre foi o crossover entre estas informações black, mas com proximidade maior com trovadores menos conhecidos, como Terry Callier, por exemplo. Além disso, sua obra tem muito de herança nordestina, tropicalismo e MPB mais tradicional em seu DNA e Younge soube respeitar tudo isso e ampliar o escopo. Por exemplo, “Jenipapo Robô” e “Nhanderuvuçu (The Creator God)” são faixas que se comunicam diretamente com as questões presentes em obras como “Cérebro Eletrônico”, de Jorge Mautner ou “Refazenda”, de Gilberto Gil. Ou seja, a modernidade equivocada e inevitável diante de um ambiente que não segue seus signos mais óbvios.
Mas o grande barato aqui é a psicodelia total de canções como “Viajante do Planeta Azul” ou “O Caçador de Estrelas”, que misturam o funk setentista via samba, com doideira astral e hippie, soando ainda atual sabe-se lá como. Também há espaço para a musa de Hyldon, o Rio de Janeiro. Canções maravilhosas como “Favela do Rio de Janeiro” ou “Um Lugar Legal”, atualizam com respeito o crossover samba-jazz-bossa-funk, com precisão, elegância e relevância, em grooves perfeitos. E Hyldon surge inspiradíssimo em versos como “O Cristo Redentor toma conta da cidade//Do Leme ao Pontal” citando Tim Maia e toda uma cena sonora que já foi muito poderosa e influente. E ainda tem outro exemplo, mas além-Rio, a linda “Verão Na Califórnia”, primeiro single deste álbum, que apresentou armas e mostrou que a coisa seria muito, muito séria. Tudo é de extremo bom gosto e os arranjos parecem feitos por um velho lobo do estúdio. Falando nisso, este álbum traz as últimas gravações feitas por Ivan Conti “Mamão”, baterista do Azymuth, que faleceu em 2023.
Este álbum é uma oportunidade imperdível para se deliciar com a excelência de um mestre total da música nacional, que deveria ser adorado e muito mais respeitado do que é. A gente só pode celebrar e agradecer a Hyldon e Adrian Younge por essa maravilha.
Ouça primeiro: o disco todo.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.